O CINEMA NOVO
Em outubro de 1967, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso apresentaram Domingo no parque e Alegria, alegria, no 3º Festival da TV Record, logo houve quem percebesse que as duas canções eram influenciadas pela narrativa cinematográfica; repletas de cut-ups, justaposições e flashbacks. Tal suposição seria confirmada pelo próprio Caetano quando ele declarou que fora “mais influenciado por Godard e Glauber do que pelos Beatles ou Dylan”. Na verdade, em 1967, no Brasil, o cinema era o que havia de mais intenso e “revolucionário”, superando o próprio teatro, cuja inquietação e cujo experimentalismo tinham incentivado os cineastas a iniciar o movimento que ficou conhecido como Cinema Novo.
O Cinema Novo nasceu na virada da década de 1950 para a de 1960, sobre as cinzas dos estúdios Vera Cruz (empresa paulista que faliu erm 1957 depois de produzir dezoito filmes), sob a tirania da ”chanchada” (gênero humorístico chulo) e por inspiração do neo- realismo italiano e dos textos dos críticos e cinastas Paulo Emílio Sales Gomes, Gustavo Dahl, Jean-Claude Bernardet e, sobretudo, Glauber Rocha. Todos faziam parte de um grupo que tentava encontrar “um caminho” para o cinema brasileiro.
“Nossa geração sabe o que quer”, dizia o baiano Glauber já em 1963.”Queremos fazer filmes antiindustriais; queremos fazer filmes de autor, quando o cineasta passa a ser um artista comprometido com os grande problemas de seu tempo; queremos filmes de combate na hora do combate”. Inspirado por Rio 40 graus e por Vidas secas, que Nelson Pereira dos Santos lançara em 1954 e 1963, Glauber Rocha – com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” – transformaria a precariedade de meios em recurso estético mudando, com Deus e o Diabo na terra do sol, a história do cinema no Brasil.
Com seu “estranho surrealismo tropical” e a violência imagística inerente a cada plano, Deus e o Diabo na terra do sol não apenas causou sensação no Festival de Cannes de 1965 como, ao abordar de forma onírica dois fenômenos sociais típicos da caatinga – o messianismo (estilo Antônio Conselheiro) e o cangaço (à Lampião-Corisco) – pôs em xeque a tradicional narrativa dramática do cinema “ideológico”. Dois anos depois, ainda mergulhado em sua sensibilidade estética alegórica e profética, Glauber lançou Terra em transe, filme que, ao discutir a “crise de consciência” das esquerdas e do populismo, talvez tenha marcado o auge do Cinema Novo, além de ter sido uma das fontes de inspiração do Tropicalismo.
A ponte entre o Cinema Novo e Tropicalismo ficaria mais evidente com o lançamento, em 1969, de Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade. Não só pela óbvia aproximação com a Antropofagia inerente à rapsódia de Mário de Andrade, mas também porque, ao fazer o filme, Joaquim Pedro esforçou-se por torná-lo um “produto” afinado com a “cultura de massa”, “A proposição de consumo de massa no Brasil é uma proposição moderna, é algo novo. A grande audiência de TV entre nós é um fenômeno novo. É uma posição avançada para o cineasta tentar ocupar um lugar dentro dessa situação”, disse ele.
Incapaz de satisfazer plenamente as exigências do mercado, o Cinema Novo deu seus últimos suspiros em fins da década de 1970 – período que marcou o auge das potencialidades comerciais do cinema feito no Brasil. Em 1992, o então presidente Collor acabou com a Embrafilme e a indústria cinematográfica do país entrou numa fase negra, da qual só começou a se recuperar na segunda metade da década de 1990, com filmes como Carlota Joaquina e O quatrilho.
♫ Cinema Novo ♫
(Letra: Caetano Veloso; Música: Gilerto Gil)
O filme quis dizer: "Eu sou o samba"
A voz do morro rasgou a tela do cinema
E começaram a se configurar
Visões das coisas grandes e pequenas
Que nos formaram e estão a nos formar
Todas e muitas: Deus e o Diabo
Vidas Secas, Os Fuzis
Os Cafajestes, O Padre e a Moça,
A Grande Feira, O Desafio
Outras conversas, outras conversas
Sobre os jeitos do Brasil
Outras conversas sobre os jeitos do Brasil
A bossa-nova passou na prova
Nos salvou na dimensão da eternidade
Porém, aqui embaixo "a vida"
Mera "metade de nada"
Nem morria nem enfrentava o problema
Pedia soluções e explicações
E foi por isso que as imagens do país desse cinema
Entraram nas palavras das canções
Entraram nas palavras das canções
Primeiro, foram aquelas que explicavam
E a música parava pra pensar
Mas era tão bonito que parasse
Que a gente nem queria reclamar
Depois, foram as imagens que assombravam
E outras palavras já queriam se cantar
De ordem, de desordem, de loucura
De alma à meia-noite e de indústria
E a terra entrou em transe, ê
No sertão de Ipanema
Em transe, ê
No mar de Monte Santo
E a luz do nosso canto
E as vozes do poema
Necessitaram transformar-se tanto
Que o samba quis dizer
O samba quis dizer: "Eu sou cinema"
O samba quis dizer: "Eu sou cinema"
Aí o anjo nasceu
Veio o bandido meteorango Hitler
Terceiro Mundo
Sem Essa, Aranha, Fome de Amor
E o filme disse: "Eu quero ser poema"
Ou mais: "Quero ser filme, e filme-filme"
Acossado no limite da garganta do diabo
Voltar à Atlântida e ultrapassar o eclipse
Matar o ovo e ver a Vera Cruz
E o samba agora diz: "Eu sou a luz"
Da lira do delírio, da alforria de Xica
De toda a nudez de Índia
De flor de Macabéia, de Asa Branca
Meu nome é Stelinha, é Inocência
Meu nome é Orson Antônio Vieira
Conselheiro de Pixote Super Outro
Quero ser velho, de novo eterno
Quero ser novo de novo
Quero ser Ganga Bruta e clara gema
Eu sou o samba, viva o cinema
Viva o Cinema Novo
Nenhum comentário:
Postar um comentário