sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Cangaço


Movimento social do interior do Nordeste brasileiro, entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Caracteriza-se pela ação violenta de grupos armados de sertanejos – os cangaceiros – e pelos confrontos com o poder dos coronéis, da polícia, dos governos estadual e federal.
Os cangaceiros percorrem os sertões do Nordeste, assaltam viajantes nas estradas, invadem propriedades, pilham os vilarejos e aterrorizam os povoados. Em grande parte derivam de antigos bandos de jagunços – tropas particulares de grandes proprietários – que passaram a atuar por conta própria. Desenvolvem táticas de ataque e despistamento, criam lideranças e até uma nova imagem, marcada pelo colorido vivo das roupas, pelos adereços de couro e por atos de coragem e bravura nos constantes embates com as volantes – pelotões da polícia enviados para sua perseguição.
Cangaceiros – Consta que o primeiro cangaceiro teria sido o Cabeleira (José Gomes), líder sertanejo que atuou em Pernambuco no final do século XVIII. Mas é um século mais tarde que o cangaço ganha força e prestígio, principalmente com Antônio Silvino, Lampião e Corisco. Antônio Silvino (Manuel Batista de Morais) começa a atuar em Pernambuco em 1896, passando depois ao Rio Grande do Norte, onde é preso e condenado em 1918. Lampião (Virgulino Ferreira da Silva), filho de um pequeno fazendeiro de Vila Bela, atual Serra Talhada, em Pernambuco, envolve-se em disputas de terras da família e, no início dos anos 20, embrenha-se no sertão à frente de um grupo de cangaceiros. Do Ceará até a Bahia, o bando de Lampião enfrenta os coronéis e as polícias estaduais; às vezes, também é chamado para combater os adversários do governo. Valente, de hábitos refinados e, desde 1930, acompanhado de Maria Bonita, Lampião – ou Capitão Virgulino – torna-se uma figura conhecida no país e até no exterior.
Por parte das autoridades
Lampião simbolizava a brutalidade, o mal, uma doença que precisava ser cortada. Para uma parte da população do sertão ele encarnou valores como a bravura, o heroísmo e o senso da honra.
O cangaço teve o seu fim a partir da decisão do Presidente da República, o Ditador
Getúlio Vargas, de eliminar todos e qualquer foco de desordem sobre o territorio nacional. O regime denominado Estado Novo incluiu Lampião e seus cangaceiros na categoria de extremistas. A sentença passou a ser matar todos os cangaceiros que não se rendessem.
Implacavelmente caçado, Lampião é encurralado e morto em seu refúgio de Angicos, uma fazenda na região do Raso da Catarina, na divisa entre Sergipe e Bahia, em 1938. O compositor Rogério Franco ilustra em versos na sua música, (Raso da Catarina) o Fato Histórico:
MADRUGADA EM ANGICO, NA CAATINGA DO SERTÃO
CANGACEIRO DE MARIA E PADIM CIÇO ROMÃO
NA TOCAIA METRALHADO, MORREU O MEU CAPITÃO

NAS MARGENS DO SÃO FRANCISCO, NUM LAJEDO SEM SAÍDA
QUE O BANDO DE VIRGULINO, CAIU NUMA ARMADILHA
VINTE ANOS DE REINADO, MORREU SEM DIREITO A BRIGA

ÊITA PRÁ LÁ, DO RASO DA CATARINA
QUE A VOLANTE DA CHACINA
METRALHOU MEU CAPITÃO
Ê TRAIÇÃO, O SERTÃO TINHA MUDADO
LAMPIÃO FOI FUZILADO
PELOS MACACOS DE JOÃO
APETRECHOS CAPRICHOSOS E ARMADURA ENCOURAÇADA
UMA VIDA DE CINEMA, BATENDO EM RETIRADA
CÃO LENDÁRIO DE OLHO CEGO, NASCIDO EM SERRA TALHADA

GOSTAVA TANTO DE JAZZ, QUE INVENTOU O XAXADO
DO CHIADO DA CHINELA E RIFLE DE PONTA RISCADO
CANGACEIRO BONAPARTE, SERÁ PARA SEMPRE LEMBRADO.

Um de seus amigos mais íntimos, Corisco (Cristiano Gomes da Silva), o Diabo Louro, prossegue na luta contra as forças policiais da Bahia para vingar a morte do Rei do Cangaço, morrendo em tiroteio com uma volante em 1940. O cangaço chega ao fim.

A Revolução de 30


Não era apenas no samba que se processava uma revolução ao fim dos primeiros trinta anos do século XX.
Apesar de, aparentemente, a Aliança Liberal se conformar com o resultado, os getulistas acusaram o governo federal de fraudar as eleições e começaram uma conspiração discreta.
Contribuiu para alimentar o clima de golpe de Estado o fato de Washington Luís proceder a uma perseguição aos políticos mineiros e paraibanos que se opuseram à candidatura Júlio Prestes. A classe média urbana, à espera de reformas, passou a defender uma solução armada.
O estopim da revolução foi o assassinato do governador paraibano João Pessoa. Na intenção de punir seu ex-aliado, o “coroné” José Pereira, o governador bloqueou a fronteira entre a Paraíba e Pernambuco, proibindo que os moradores da região da cidade de Princesa (hoje Princesa Isabel, no sul do Estado), chefiada por Pereira, comercializassem com Recife, salvo com o pagamento de elevado imposto.
A questão se transformou em guerra civil e não contou com qualquer intervenção do governo federal. No dia 26 de julho de 1930, João Pessoa viajou até Recife. Enquanto tomava chá com políticos e amigos em uma confeitaria, o advogado João Dantas entrou, aproximou-se de sua mesa e disse: “Sou João Dantas, a quem tanto humilhastes e maltratastes”.
Disparou-lhe três tiros à queima roupa.
Para vingar-se do apoio que o advogado paraibano deu a José Pereira, os aliados de João Pessoa publicaram cartas que Dantas enviara para sua amante, Anaíde Beiriz. A professora primária caiu em desgraça e Dantas fugiu para o Recife.
Mais uma vez, Eduardo Souto, em parceria com Oswaldo Santiago, fez a história em verso e canção. O Hino a João Pessoa foi registrado em disco na voz de Francisco Alves:

João Pessoa, João Pessoa
Bravo filho do Sertão
Toda Pátria espera um dia
A tua ressurreição

João Pessoa, João Pessoa
O teu vulto varonil
Vive ainda, vive ainda
No coração do Brasil

João Pessoa era contra a luta armada para impedir Júlio Prestes de governar, mas, ironicamente, seu assassinato foi o pretexto – já que o governo federal nada fez para solucionar o conflito na Paraíba – para que os políticos ligados à Aliança Liberal (liderados por Getúlio Vargas) e os tenentistas derrubassem o Presidente. Em meio à comoção popular, começou um levante em 3 de outubro. No dia 31, Getúlio Vargas entrou triunfante no Rio de Janeiro. Chegava ao fim a “política do café-com-leite”.
Lamartine Babo compôs e Almirante gravou Barbado foi-se. “Dr. Barbado” era o apelido de Washington Luís:

De sul a norte todos viram a intrepidez
De um Brasil heróico e forte
A raiar no dia três
A Paraíba, terra santa, terra boa
Finalmente está vingada
Salve o grande João Pessoa

Dr. Barbado foi-se embora, deu o fora
Não volta mais, não volta mais...

Em 3 de novembro de 1930, Vargas tomou posse do governo “provisório”. Mesmo que a Revolução – ou contra-revolução, como ele gostava de chamar – não tenha sido de caráter militar, ficou claro que com ela os militares, que conspiravam desde a queda de Floriano Peixoto, reconquistaram o poder. Notadamente os tenentistas.
Logo que assumiu o cargo de Presidente, Getúlio anistiou os rebeldes de 22 e 24; criou os ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio e da Saúde e Educação; modificou o sistema eleitoral; fechou o Congresso Nacional e as Assembléias Estaduais e, com exceção de Minas Gerais, nomeou interventores federais nos estados – a maioria do movimento tenentista.
Mais tarde, a música de maior sucesso do carnaval de 32 faria uma alusão à políticas dos interventores (Fui nomeado teu tenente interventor). Teu cabelo não nega, composta por Lamartine Babo, em adaptação à marcha Mulata, dos Irmãos Valença, que, depois de uma disputa judicial, passaram a assinar a canção em parceria com Lamartine. A gravação foi de Castro Barbosa:

O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor

Tens o sabor
Bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata, mulatinha, meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor...

Durante o governo Getúlio, os novos grupos dominantes adotaram o chamado populismo como linha política. Ou seja, a elite passou a fazer concessões ao povo, mas apenas até um limite que ela mesmo estabelecia.
Atendendo a reivindicações, oficializou-se a Previdência Social e legalizaram-se os sindicatos. Em Contrapartida, a maioria das greves foi declarada ilegal.
Para desmotivar possíveis protestos, o novo governo concedeu várias vantagens trabalhistas, tais como jornada de trabalho de oito horas diárias, salário mínimo, férias pagas, proteção ao trabalho infantil e feminino, dentre outros.

Samba & Dinheiro


Uma característica dos primeiros anos da década de 30 foi a participação do carnaval como fator de incentivo para o lançamento de discos. Durante toda a década, e em boa parte dos anos 40, as gravadoras programavam o período de novembro a janeiro para abarrotar o mercado de sambas e marchas para o carnaval. As produções lançadas nos demais meses eram chamadas de “músicas do meio do ano”. Durante muitos anos, o consumidor foi contemplado também por gravações especiais para o período junino e para as festas de fim de ano.
Os primeiros anos da década de 30 ficariam marcados ainda pelo início de um processo de conscientização profissional dos compositores. Os dirigentes das gravadoras e das emissoras de rádio, assim como os proprietários das editoras musicais que começavam a se multiplicar, abriram os seus negócios sabendo que estes eram capazes de render lucros incalculáveis. Alguns cantores também percebiam que o ofício escolhido poderia proporcionar recursos suficientes para a sua sobrevivência. Mas os compositores ainda levariam algum tempo para se convencerem de que exerciam uma profissão que poderia ser remunerada.
Uma cena que foi narrada pelo compositor Cartola – Angenor de Oliveira (1908 – 1980) - , numa entrevista, revela que, no final dos anos 20, a mentalidade do compositor popular ainda andava muito distante da sociedade de consumo. Numa tarde de 1929, Cartola estava em seu barraco, no Morro da Mangueira, quando um primo o procurou para comunicar que, lá embaixo, o cantor Mário Reis o esperava para negociar a compra de um dos seus sambas.
“Comprar um samba meu? Pra quê?”, queria saber Cartola, para quem comprar um samba era como comprar o vento, a chuva, qualquer coisa, enfim, que jamais seria comercializada.
O primo convenceu-o de que o visitante estava disposto a comprar o samba e Cartola teria de fixar o preço. “Quanto vou pedir?”, perguntou o compositor. “Será que 50 mil-réis está de bom tamanho?” , especulou. O primo achou barato demais e sugeriu que pedisse 500 mil-réis, quantia que Cartola jamais vira em toda sua vida. Acabaram entrando num acordo, fixando o preço do samba em 300 mil-réis, quantia com a qual o cantor Mário Reis concordou imediatamente. O samba chamava-se Que infeliz sorte e foi gravado por Francisco Alves, sem o menor sucesso.
A arrecadação e a distribuição de diretos autorais ainda era algo nebuloso naquela época, embora uma lei de autoria de Getúlio Vargas, quando deputado representando o Rio Grande do Sul, assegurasse para os compositores o pagamento dos direitos autorais, todas as vezes em que as músicas fossem exploradas comercialmente. Para ter condições de receber algum dinheiro pelas suas obras, porém, o compositor era obrigado a inscrever-se na Sociedade Brasileira de Autores Teatrais – a SBAT - , que contava com um departamento especializado em arrecadar os direitos autorais das músicas. O direito autoral vindo do teatro era chamado de “grande direito”. O que vinha da execução de músicas não passava de “pequeno direito”. E era mesmo. A maior arrecadação de direitos musicais vinha do próprio teatro, onde a SBAT atuava com desembaraço. Como já contava com uma estrutura para defender os interesses dos autores teatrais, reservava uma pequena percentagem da arrecadação para os compositores que conseguiam colocar músicas nas peças. O rádio pagava quanto e quando queria. E a arrecadação em bares, cabarés e boates era nula. A fonte de renda mais segura eram as gravadoras, que reservavam uma reduzidíssima taxa da venda de cada disco para pagamento aos cantores e aos compositores.
A ingenuidade dos autores musicais estimulou um comércio clandestino, através do qual alguns conhecedores de toda aquela engrenagem especializaram-se em comprar a autoria das músicas dos compositores mais modestos, que, muitas vezes, abriam mão de obras que viriam a consagrar-se, em troca de um pagamento que mal dava para o almoço ou para o jantar. Na gíria do samba, os falsos autores eram conhecidos como “comprositores”. Não são poucas também as histórias de apropriação indébita da música alheia, já que os humildes compositores não sabiam que bastaria registrar suas obras na Escola Nacional de Música ou na Biblioteca Nacional para assegurar a sua autoria.

O RÁDIO

Além da fundação do Partido Comunista, vários outros acontecimentos merecem registro no ano de 1922, como, por exemplo, a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, também fruto de idéias estrangeiras em estética, trazidas da Europa por jovens intelectuais, os modernistas. Em apenas três dias agitaram intensamente a cultura brasileira. A preocupação dos modernistas neste momento foi romper com o passado e absorver as tendências vanguardistas da Europa. Com o Manifesto Pau-Brasil (1924), o movimento modernista se dedicou a “descobrir o Brasil”, buscar a identidade nacional brasileira.
Aos 7 de setembro de 1922, realizou-se a Exposição Internacional para comemorar o centenário da Independência. O discurso de abertura do presidente Epitácio Pessoa inaugurou , em transmissão experimental, a radiodifusão no Brasil. Era o início do rádio, que em breve se tornaria o maior meio de comunicação do país até o advento da televisão na segunda metade do século.
A radiocomunicação – descoberta pelo italiano Guglielmo Marconi e aperfeiçoada por vários outros inventores -, possibilidade de transmissão através do espaço de ondas eletromagnéticas capazes de produzir sons, começou no Brasil como brincadeira, como nos ensina José Ramos Tinhorão:
“Do momento em que a notícia dessa fabulosa possibilidade de transmitir os sons pelo espaço espalhou-se pelo país, começaram a surgir dezenas de curiosos resolvidos a praticar a radiodifusão como mais uma diversão tecnológica. Esse espírito de brinquedo e curiosidade de amadores ia revelar-se, desde logo, na organização de tais experiências com caráter de clubes, os famosos radioclubes que acabariam dando nome a tantas emissoras de todo o Brasil.”
Oficialmente, o rádio começou durante a exposição do centenário da Independência. As companhias norte-americanas Westinghouse e Western Eletric montaram estações no Corcovado e na Praia Vermelha, respectivamente. Transmitiam, em caráter experimental, óperas, discursos políticos e palestras educativas.
Educação foi justamente a principal motivação da criação da primeira radiodifusora permanente no Brasil. Edgar Roquete-Pinto, médico, antropólogo e educador, deslumbrou-se com a invenção do rádio e logo a concebeu como instrumento educativo. Fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 1923. Foi o estopim para que no mesmo ano fossem fundadas a Rádio Clube do Paraná e a Rádio Educadora Paulista. A segunda emissora carioca, a Rádio Clube do Brasil, veio em 1924 e daí em diante todo o espaço aéreo brasileiro passou a ser ocupado.

SEU MÉ E DOUTOR BARBADO

O ano de 1922 marca também a atribulada sucessão de Epitácio Pessoa, na segunda eleição efetivamente competitiva da Primeira República – a primeira fora a Campanha Civilista, em 1910, na primeira candidatura de Rui Barbosa. A eleição ocorreu no mês de março. Paulistas e mineiros indicaram o mineiro Artur Bernardes. A oposição, formada por Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro – estados intermediários - , indicou Nilo Peçanha. Era a Reação Republicana.
O poder dominante prevaleceu, como sempre ocorreu no período, e Artur Bernardes foi eleito. Isso não significa que o processo tenha sido tranqüilo. Eventos violentos marcaram a sucessão.
A imprensa havia publicado uma série de cartas, cuja autoria era atribuída a Bernardes. Nelas, os militares eram alvos de ofensas. O marechal Hermes da Fonseca era denominado, entre outras coisas, de “sargentão sem compostura”. Foi o chamado episódio das “cartas falsas”.
A partir da Primeira Guerra Mundial, um movimento de militares liderado por jovens oficiais de baixa patente, com a participação de suboficiais, sargentos e cadetes, já vinha protestando inicialmente contra o abandono do exército. Posteriormente, além da questão militar, o movimento ganhou cunho político, reivindicando reformas políticas e sociais. Trata-se do chamado Tenentismo.
A revolta contra as “cartas falsas” foi tão grande que Epitácio Pessoa acabou fechando o Clube Militar ao enquadrá-lo em uma lei destinada a fechar associações de anarquistas e prostíbulos. Entre os tenentistas já se falava em revolução.
A primeira rebelião tenentista aconteceu logo após a eleição de Artur Bernardes,. Foi a Revolta do Forte de Copacabana. Os líderes do movimento foram o capitão Euclides Hermes (filho de marechal Hermes) e o tenente Siqueira Campos. O capitão Euclides foi negociar com o Ministro da Guerra e acabou preso. Siqueira Campos decidiu que os rebeldes iriam sair da fortaleza e enfrentar as forças fiéis ao governo. Dos 301 militares rebeldes, a maioria debandou logo à saída e apenas 18 marcharam pela Avenida Atlântica – os “18 do Forte” – e contaram com a adesão de um civil, o engenheiro Otávio Correia, para enfrentar os 3 mil soldados do governo. Ao tiroteio sobreviveram apenas os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes.
A música também testemunhou a sucessão de Epitácio Pessoa. Em 1921, uma marcha carnavalesca atacava Artur Bernardes, que tinha o apelido de “Seu Mé”:

Ai, seu Mé
Ai, Seu Mé
Lá no Palácio das Águias
Olé
Não hás de pôr o pé

Os autores, Freire Jr. e Careca, chegaram a ser presos. Em 22, após a vitória de Bernardes, a letra da canção foi devidamente retificada e gravada em disco na voz de Francisco Alves:

Ai, Seu Mé
Ai, Seu Mé
Se não fosse a Santa Cruz
Olê-ré
Tu não tomavas pé.

SÃO PAULO DÁ CAFÉ, MINAS DÁ LEITE E A VILA ISABEL DÁ SAMBA

O século XX começou com o governo de Campos Sales (1898 – 1902), que promoveu uma política de valorização da moeda brasileira perante a libra esterlina, moeda de referência internacional – 1 libra valia 48 mil-réis. Assim, reduziram-se os preços dos produtos estrangeiros e muitas indústrias nacionais que não agüentaram a concorrência acabaram fechando ou diminuindo a produção. A crescente exportação do café, por outro lado, só fez valorizar. Era a hegemonia econômica das oligarquias agrícolas.
Nesse período, era evidente a ausência do sentimento de nacionalidade. Não havia partidos políticos de âmbito nacional. Cada estado possuía seus próprios partidos. Os mais poderosos estavam nos estados mais ricos: PRP (Partido Republicano Paulista) e PRM (Partido Republicano Mineiro), que detiveram o poder até a Revolução de 30. Foi a chamada “política do café-com-leite”.
Apesar de a concentração populacional estar no campo, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro já começavam a mostrar características de metrópole.
A capital do Brasil era o Rio de Janeiro. Desde 1892, funcionava no Rio o estabelecimento comercial do imigrante europeu Frederico Figner; a Casa Edison – homenagem a Thomas Edison, o inventor do gramofone e do grafofone -, importadora dos aparelhos sonoros e dos cilindros de cera, com música estrangeira a princípio e sede da primeira gravadora nacional; a Odeon, com as gravações dos fonogramas de vozes pioneiras dos cantores Cadete (Antônio da Costa Moreira), Bahiano (Manuel Pedro dos Santos) e, um pouco mais tarde, Eduardo das Neves. Fred Figner deu início à profissionalização da música popular no Brasil.
Manuel Pedro dos Santos, o Bahiano, nascido em Santo Amaro da Purificação, em 1887, foi o primeiro cantor a se profissionalizar no Brasil. Foi ele o intérprete do que até o final do século XX se acreditava ser o primeiro samba gravado no país – Pelo telefone -, de autoria duvidosa, registrado por Donga e Almeida, em 1917, na gravadora Odeon. A própria Odeon já havia lançado de 1912 a 1914 Descascando o pessoal e Urubu malandro, entre outras músicas, qualificadas como samba em seu catálogo.

A BAHIA ESTAÇÃO PRIMEIRA DO BRASIL...
... QUE ALEGRIA NÃO TER SIDO EM VÃO QUE ELA EXPEDIU
AS CIATAS PRA TRAZEREM O SAMBA PRO RIO, POIS O MITO SURGIU DESSA MANEIRA...
(Onde o Rio é mais baiano – Caetano Veloso)

No Rio de Janeiro, à Rua Visconde de Itaúna, 117, situava-se a casa de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, a mais famosa das “tias” baianas – herdeiras das tradições culturais africanas encarregadas de transmiti-
las às gerações futuras. O marido de Tia Ciata, o também negro e baiano João Batista da Silva, havia cursado medicina em Salvador e por conta da formação ocupava bons empregos e contava com o respeito da polícia. A casa da Tia Ciata exalava a cultura africana: dança, culinária, cultos religiosos (candomblé) e ritmo. Pode ser considerada um dos berços do samba.

O FUNDO DE QUINTAL

No início do século XX, o samba era apenas ritmo. Não havia letras. Alguns anos antes, a partir de 1880, surgira um gênero totalmente instrumental: o choro. Os primeiros grupos de chorões foram formados pelo flautista Calado (Joaquim da Silva Calado), músico negro de excelente formação. A maioria dos músicos que cercavam Calado morava na “Cidade Nova” (RJ) e tocava ritmos estrangeiros nos bailes e saraus elegantes. Em suas reuniões, a polca da Boêmia, o schottisch teuto-escocês ou a valsa da Alemanha ou da França ganhavam um sotaque totalmente brasileiro. Era o choro. Criatividade e improviso. Suas origens brancas o tornavam aceitável pela elite e, por conseguinte, pela polícia, que não se incomodava com o som das rodas de choro que se ouvia nas salas das residências do Rio de Janeiro.
Quem passasse à porta da casa da Tia Ciata também ouviria a música dos salões. O choro, porém, funcionava como disfarce para que, no fundo, se fizesse samba. Como declara Pixinguinha: “O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado nos terreiros, pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para empregados”.

Nosso Foco...

A música está na alma do Brasil, é uma das formas mais autênticas da expressão do povo e da própria nação e nos leva ao encontro de nós mesmos, descortinando nossa identidade, contribuindo para que venha a lume a nossa própria história, a história da nossa cidade, do nosso estado, do nosso país.
É espantoso constatar que, apesar da riqueza de informações que boa parte das músicas compostas ao longo de nossa história oferecem, elas foram deixadas de lado, descartadas enquanto documentos vivos da história brasileira.
A nossa coluna no Linha Azul faz parte de um projeto que visa resgatar episódios e fatos marcantes da nossa história, retirando do baú musical brasileiro uma canção temática esquecida, uma marchinha genuína do nosso carnaval, um jingle que retrate um momento político brasileiro.
Iniciaremos hoje a análise do contexto histórico de uma grande mulher que foi destaque musical do nosso país: Chiquinha Gonzaga

A História Através da Música
(Chiquinha Gonzaga)

Desde a segunda metade do século XIX, o piano passou a integrar o mobiliário das salas da classe média brasileira. Assim, a venda de músicas em papel impresso para piano foi uma das primeiras formas de divulgação musical, estendendo-se até a virada da década de 20 para a de 30 do século XX. A música popular tinha também no teatro um importante veículo de divulgação. Numa época em que a música estava intimamente ligada à atividade teatral, colocar uma canção numa peça de sucesso era meio caminho andado para o êxito.
Entre os compositores e instrumentistas que se beneficiaram do sucesso no teatro, um nome de grande destaque foi, sem dúvida, o de Chiquinha Gonzaga, uma extraordinária pioneira tanto no campo da música quanto na esfera do comportamento. Integrante de uma família de classe média, escandalizou a sociedade do século XIX ao separar-se de dois maridos e dedicar-se à música de maneira independente, num segmento predominantemente masculino. Graças ao seu talento, superou todas as resistências, pois era exímia pianista e compunha obras tão bonitas quanto inovadoras. Se a música brasileira urbana tem muitos pais, a mãe é uma só: Chiquinha Gonzaga. Foi ela que, em 1899, fez a primeira música composta especialmente para o carnaval, a marchinha Ô abre alas. Chiquinha já estava com 67 anos de idade quando, involuntariamente, provocou uma crise envolvendo o presidente da República e o Senado. No dia 26 de outubro de 1914, o presidente da República, Marechal Hermes da Fonseca, ofereceu no palácio presidencial uma recepção aos chefes das missões diplomáticas estrangeiras, com a participação da “fina flor” da chamada alta sociedade brasileira. Teria sido uma reunião como outra qualquer se a mulher do presidente, a jovem Nair de Teffé, não tivesse seguido o conselho do compositor Catulo da Paixão Cearense e programado a execução, no violão, de uma das músicas mais famosas de Chiquinha Gonzaga, O corta-jaca, já bastante conhecida do público através do teatro. Para os conservadores, um duplo pecado: música popular numa recepção presidencial e tocada por violão! Logo um violão, um “instrumento de capadócios”, como se dizia na época, e que servia até de agravante para quem era detido pela polícia nas ruas. Se apresentasse nos dedos as marcas características dos violonistas, era imediatamente levado para a cadeia sob a acusação de vadiagem. Os jornais publicaram o escândalo nas primeiras páginas. Os estudantes, parecendo querer demonstrar que nem sempre estão na vanguarda, promoveram manifestações nas ruas, enfrentando, por isso, a repressão do próprio Exército. No Senado Federal, nada menos do que Rui Barbosa soltou o verbo com todos os seus preconceitos. Dirigindo-se ao presidente do Senado, bradou:
“Por que, sr. Presidente, quem é o culpado se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao corta-jaca? Uma das folhas de ontem estampou em fac simile o programa de recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, sr. presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas, nas recepções presidenciais, o corta-jaca é executado com todas as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria.”